Secretaria de Educação do Estado do Pará EE Maria Gabriela Ramos de Oliveira |
NADA DE NOVO NO FRONT ESCOLAR
Em seu romance "Nada de Novo no
Front", o alemão Erich Maria Remarque traz como pano de fundo de sua trama a
Primeira Guerra Mundial (1914-1918). O personagem principal é "Paul Bäumer",
um jovem soldado raso a quem o autor empresta a função de porta-voz de uma crítica social, que durante o
contexto da guerra denunciava não apenas os horrores dos conflitos, mas a
estupidez das sociedades europeias (particularmente de sua pátria, a
Alemanha), que insistiam em adiar o fim da guerra, haja vista que o resultado
catastrófico (a morte de mais de oito milhões e meio de soldados – sem
computar os civis) já se podia antever pelo nível de destrutibilidade absurdamente elevado que representaram as primeiras refregas soldadescas no front.
Num dado momento da narrativa, o protagonista Paul Bäumer reflete sobre como sua geração foi arregimentada para as frentes de batalha,
onde, no primeiro entrevero com o inimigo, viu-se amadurecida a ponto de
abandonar a sensaborona promessa iluminista apregoada pelos professores
colegiais. Diz-nos, a propósito:
Os professores deveriam ter sido para
nós os intermediários, os guias para o mundo da maturidade, para o mundo do
trabalho, do dever, da cultura e do progresso, e para o futuro [...] Mas o primeiro
morto que vimos [no front] destruiu esta convicção. Tivemos que reconhecer que
a nossa geração era mais honesta do que a deles; só nos venciam no palavrório e
na habilidade. O primeiro bombardeio nos mostrou nosso erro, e debaixo dele
ruiu toda a concepção de mundo que nos tinham ensinado (REMARQUE, 1981, p. 16).
Sem ser indiferente aos percalços da
escola, Erich M. Remarque denunciou-lhe o papel alienante, pois mesmo em uma
Alemanha prestes a sujeitar suas hostes juvenis à carnificina da guerra, os
professores teimavam em lhes ensinar coisas tão distantes da realidade mais
imediata, que não demoravam a cair em completo descrédito. Bastaram os
primeiros zunidos ensurdecedores caírem do céu, ultimando em estrondosa materialidade vista, por todo o front, na forma de
crateras, enormes crateras em cujo seio irrompiam corpos crestados das primeiras vítimas
reais da ilusão colegial. Bastou o contato ruidoso com a realidade da guerra, bem
distante das formulações filosóficas, para que a maioria dos soldados
alemães despertasse de seu sonho juvenil.
Num contexto belicoso dessa magnitude ou mesmo durante
os longos anos que o precederam, a escola deveria atender às necessidades prementes da sociedade de então, insuflando, como era o caso da Alemanha, no espírito de uma
geração inteira de jovens soldados a coragem e o altruísmo pátrio. Permita-nos lembrar
que essa alienação escolar tratada na obra de Remarque não é algo estranho nos dias de hoje. Mesmo que
vivamos fora do contexto real da guerra, as dificuldades cotidianas não deixam
de ter certa conotação. Os fronts de
hoje não são bem as planícies francesas e alemães que se tornaram palcos de
matança naquele início de século. Apesar de o entorno da escola pública não se
parecer com Verdun, as trincheiras estão por todo lado e à vista de quem se
digne a olhar também para além de páginas de um regimento escolar ou de volumosos livros didáticos.
É por essa razão que "Nada de Novo
no Front" nos antecipa, talvez, uma lição, a qual, se realmente fôssemos
levá-la a sério, evitar-nos-ia o constrangimento, que tanto nos fere o orgulho
professoral, de sermos também responsáveis pelo distanciamento escolar da
vida cultural e social dos alunos. Portanto, independentemente de o contexto
histórico ser belicoso ou não, a lição que poderíamos extrair dessa obra é a de
que a escola deveria preparar os indivíduos para o “pior”, sem lhes esgotar, contudo, a esperança de viver em um mundo melhor; dotando-lhes de um certo espírito austero, ou melhor, de
condições morais e intelectuais (culturais) favoráveis às exigências do mundo do
trabalho e da vida pública sob as mais diversas circunstâncias.
O distanciamento da realidade social e
cultural extramuro – esta bem mais pertinente à vida dos alunos – é o que, de
certo modo, inviabiliza a escola pública nos dias hodiernos. Senão, vejamos a
situação dos alunos do turno da noite, em especial dos que cursam séries
relativas à Educação de Jovens e Adultos - EJA. A cada início de ano letivo
muitos ex-alunos retornam à escola. As razões desse retorno (mais ou menos
demorado) são inúmeras, indo além do que possamos, juntos, conjecturar. Uma
prova disso são os corredores imersos no burburinho; vistos repletos de gente
apressada, parte da qual vinda do trabalho, para não perder o início das aulas.
Nas salas, a assistência profusa de alunos é envolvente e contagiante; os menos
convictos logo se inebriam de esperança e já não sabemos quem realmente apresenta
espírito resoluto ante o prenúncio das batalhas acadêmicas.
Muitos estão prontos para assumirem seus
postos. Caderno e caneta à mão, ansiosos por enfrentar quem quer que seja o "inimigo" - o cansaço, as atribulações do meio urbano, o longo período afastado dos "bancos" escolares etc.
A formação nos fronts é apenas uma
questão de tempo. Logo chegará a primeira avaliação bimestral. Mas, enquanto
essa batalha não se entremostra no horizonte mais próximo, ocupam-se, os
alunos, apenas com seus sonhos, alguns dos quais projetos altaneiros que chegam
às raias fanfarronescas. Daí, talvez, o burburinho febricitante a que nos
referimos acima tomando os corredores antes e depois das aulas.
O retorno massivo de alunos faz-nos
lembrar, de passagem, da parábola do filho pródigo, mas, ao contrário do
desfecho bíblico, parte daqueles que retornaram à escola logo irá evadir; desertar do front da primeira batalha real da vida escolar. Seja um
cálculo, uma redação de quinze linhas, uma leitura dirigida, um seminário,
sejam razões extraescolares (trabalho, família etc.), muitos capitulam seus sonhos sob as primeiras "rajadas de metralhadoras da artilharia inimiga".
Estamos no início do segundo bimestre,
mas já é visível a ausência de muitos alunos. Há muitas cadeiras vazias,
inclusive. Nos corredores, míngua aquele fluxo vivaz de apresto letivo. O
silêncio e a quietude no ambiente escolar são os cansados arautos que, em todo
meado de ano letivo, costumam-nos alertar: muitos abandonaram o caminho, cujos
primeiros passos mal haviam sido dados.
Se não há nada de novo no front escolar, resta-nos antecipar às investidas "inimigas". Uma das "armas" contra o aumento da evasão escolar é desenvolver estratégias que ensejem a (re)integração do aluno à comunidade escolar, para que ele ressignifique sua vida pelo concurso de valores, crenças e práticas sociais positivos desenvolvidos também no contexto escolar. Mas, para reintegrá-lo, é preciso conhecê-lo; é preciso saber quais são suas aspirações, inclinações culturais, dotes intelectuais, industriais etc. Sem tais informações, a
escola continuará a assistir ao fenômeno da evasão escolar, esse inimigo conhecido de todos nós, ameaçar de morte os sonhos de sucesso dos alunos, dos professores e de toda a comunidade escolar, que permanecerá perdida em alguma trincheira no front da vida sem muito do que se orgulhar.
André Pureza
Diretor
REFERÊNCIA
REMARQUE, Erich M. Nada de novo no front. São Paulo (SP): Abril Cultural, 1981.
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